Na velha garagem de nossa casa encontrei muitas coisas antigas, mas nada tão interessante como um velho rádio de caixa de madeira, antigo como o tempo.
Limpei-o cuidadosamente, tentei polir os cromados, fiz o possível para vê-lo funcionar. Algo dentro de mim queria que aquela relíquia funcionasse, nem que fosse por um momento, e que me dissesse algo.
Era o rádio de meu avô.
Vovó contou-me, eu ainda menino, que seu futuro marido, apenas com dezoito anos, embarcou para a guerra, pedindo-lhe que tomasse conta do rádio, que era o que de mais caro possuía. Terminaria os estudos na volta, arrumaria um emprego, casariam, e seriam felizes para sempre.
Ela passava delicadamente uma camada de cera de abelha, toda semana, chovesse ou fizesse sol. Ali ouvia os grandes artistas do momento, recebia ansiosamente as notícias do conflito, aprendia a geografia dos países distantes, percorrida pelas tropas aliadas em perseguição ao Eixo. Chorava, sorria, tornava-se ansiosa, sonhava com a volta do noivo.
Depois de três anos, e uma dezena de cartas, recebeu pela Cruz Vermelha um pequeno maço de cartas, relatando que o autor delas falecera em decorrência de ferimentos recebidos...
Caiu em depressão profunda, e as lágrimas vinham de dia, de noite, acordava quase sempre de madrugada e caia em deslavado pranto.
No fim da guerra, um soldado bem trajado e com o rosto embargado de tristeza bateu na porta da frente.
Era um conhecido de seu amado. Conheceram-se no “front”, tocaram viola, beberam e comeram juntos. Dormiram no mesmo abrigo, rastejaram no mesmo barro. Ele vira o amigo ser atingido nas costas, arrastara-o por centenas de metros, até o socorro. Sofrera a privação da amizade, e sentira a sua perda. Ainda estava triste.
Trouxe para ela a fotografia que ele sempre levava, autografada por ela. E uma última carta, na qual pedia que ele cuidasse dela, dos pais e do seu amado rádio. Titubeara um pouco, mas decidira-se, e ali estava ele.
Conversaram, cruzaram histórias, informaram-se sobre a doce personalidade do finado.
Tornaram-se amigos, confidentes, reverenciando a memória de um rapaz corajoso, leal, sincero.
E essa dolorosa amizade tornou-se calor humano, companhia delicada e inseparável, amparo e coração aberto, e então o amor veio, com calma mas de maneira definitiva.
Esse amigo tornou-se meu avô. Ela, minha avó.
Nunca encontrei o retrato do noivo, mas imagino que ele esteja feliz, esteja onde estiver.
Décadas depois, meus avós já passados também, encontro seu rádio. O rádio deles, dos três.
E ele funcionou, depois de muito trabalho. Imagino por momentos a emoção dessas três pessoas, sentados à roda do aparelho, suas vidas tomadas pela música e pela informação, os casais de mãos dadas a saber os destinos do mundo e da nação por simples ondas eletromagnéticas, o hálito e o olhar entrelaçados de emoção. Amar talvez seja um destino, uma causa das pessoas. Um dever para conosco.
O brilho do rádio me trouxe à realidade. Por acaso, e por fortuito acaso do momento, aqui estou. Por causa desse rádio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário