O frio insistia em entrar pelas frestas da janelas antigas, naquele dia de outubro.
A rua, por si só, sempre foi calma. A vizinhança, se bem que nunca a conheci direito, era um pouco mais ruidosa. Uma idosa, minha vizinha de andar, insistia em deixar cair o regador de lata, lá pelas seis da tarde. Mas eu tinha certeza que ouvira um disparo de arma de fogo.
Procurei afastar meus pensamentos de qualquer violência, e de muito mais. Havia me divorciado pela segunda vez, em Bruxelas, e retornara a Paris, ao meu velho apartamento da Rue Lecourbe, 2. Tentava esquecer que nunca fizera as vontades de Liliana, enquanto mentia para mim mesmo que estava feliz, num lugar que detestava, com alguém que pensava totalmente diferente do que eu acreditava. Só queria estar só. Imerso em meus desenganos.
O som, rouco, não ecoara, parecia abafado, mas eu sabia, sem nunca ter usado um revólver, que um disparo havia acontecido. Senti-me acuado, entre as paredes claras e o dia que morria lá fora. Pensei em ligar a TV, mas seria assumir que estava assustado, e desejei provar para meu ego que não estava. Apanhei o jornal e sentei-me no sofá, mas a campainha tocou, duas vezes.
Abri a porta, com cuidado, e vi uma garota, ruiva, que eu não conhecia.
Pediu que a deixasse entrar, com sotaque do norte, e, aparentando achar que eu não entendera, pediu em inglês que eu a deixasse entrar.
Não sei porquê deixei. Perguntou meu nome, antes de responder perguntei o dela. Evelyne.
Jerome, prazer, eu disse. Contou ter vinte e um anos, de Arras, que fora convidada a trabalhar como modelo fotográfico, que brigara com o agente (seu namorado o que seja), ele a colocara para fora do apartamento, e, sim, ela ouvira um tiro. Como estava sem documentos, não queria saber da Polícia.
Tentei acalmá-la, dizendo que se ela nada tinha com o crime não haveria do que se preocupar.
Ela falava, gesticulava, andando pela minha sala, e quando eu disse isso, ela parou, e me encarou. O sorriso mais encantador que eu já vira apareceu.
Perguntei sobre sua bagagem, Evelyne disse que estava no estúdio. Que dormia lá. E rapidamente me pediu para tomar uma ducha. Que discutira, que o suor a incomodava, que iria embora em seguida... eu disse que levaria uma toalha em seguida, enquanto isso, a campainha soava novamente. Evelyne foi para a ducha, com bolsa, capa de chuva e tudo.
Polícia. Um cão farejador. Uma policial fez perguntas sobre o tiro, horário em que eu estava no edifício, se vira alguém. Disseram que chegaram logo após o crime, estavam de passagem, mas uma senhora idosa atirara um regador de plantas na frente da viatura. Coincidência, o cão era treinado e vinha do aeroporto, onde farejava drogas, para seu descanso no canil. Ele me cheirou as mãos, nada de pólvora, nada de nada. Perguntaram sobre se havia alguém na ducha, eu disse que minha filha estava lá, e poderia confirmar tudo o que eu dissera. Pareciam ter pressa, estavam desinteressados nesse caso, disseram apenas para ficar em casa, que a Divisão de Homicídios iria apanhar nossos dados assim que chegassem. Tinham que levar o cão ao canil, e desconfio, desejavam livrar-se do problema, digo, cadáver no apartamento 4. Indaguei quem era, afirmaram ser o dono de uma agência de modelos. O cão queria entrar na minha sala, mas a oficial com a guia o arrastou para a viatura.
Levei a toalha para Evelyne. Bati na porta, duas, três vezes, e ela abriu. Sem nenhum pudor.
Vi a plenitude da juventude de Evy, contra a luz do entardecer. Dei-lhe a toalha, desejando ardentemente ser um pedaço de tecido pela primeira vez na vida. Ela se secou na minha frente, de costas para mim, sem se esconder, com uma atitude de introspecção, que cobrava minha atenção. Ela não queria estar só naquele momento. Queria que eu visse, que soubesse de cada centímetro quadrado de sua pele, de cada minúscula pinta, milhões delas, e de seus cabelos que lembravam uma cascata de chamas. Deixou a toalha cair e me tomou pela mão. Por que não corri ?
Retirou cada peça de minha roupa, arrepiei-me de frio, me levou à ducha, me banhou.
Conduziu-me à cama, e me usou. Me fez refém de sua vontade e me teve dentro dela, com uma segurança inacreditável. Pediu-me que a acariciasse da maneira que ela queria, que a tivesse com brutalidade, do jeito dela. Eu era o macho, mas me senti invadido.
Foi-se às duas da manhã, prometendo voltar pela manhã, pois nosso depoimento seria tomado. Falsos pai e filha.
Mantive a versão dela intacta. Nosso irreprovável desejo de depor fez com que a polícia sequer cogitasse de pedir nossos documentos.
Voltamos para o apartamento, nos amamos e dormimos até o dia seguinte.
Era bem cedo, ela não estava a meu lado. Procurei-a em todos os cantos. Partira, em silêncio. Não deixara sequer um bilhete.
Se eu acreditava nela ? Ainda acredito que ela disse a verdade, nem cogito imaginar quem assassinou o agente. Que eu saiba, o caso foi engavetado.
Mais um dia, e a velha sra. Bartot (a do regador) me pergunta quem era a garota que saiu do meu apartamento às quatro da manhã. Disse que era minha filha. Ivy.
O apartamento continua lá. Aluguei-o para uma fotógrafa. Caso encerrado. Ivy ?
Quem era Evelyne ?
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