Assisti, emocionado, com um conhecido, ex-militar, a um videoclipe antigo, muito conhecido de quem se interessa por música popular brasileira nos anos 60, e também daqueles que estudam os movimentos populares durante o regime militar (1964-1985).
Trata-se da apresentação de “Disparada”, moda de viola composta por Geraldo Vandré e Theo de Barros, cantada por Jair Rodrigues no festival da canção da TV Record em 1966.
Coisa de cinco minutos, ficamos conversando algum tempo sobre o clima daquela época. Meu amigo, bem mais velho que eu, afirma ter vivenciado os “anos de chumbo” com intensidade. Para mim, resta estudar em arquivos antigos as polêmicas, os conflitos, o silêncio forçado, as músicas de protesto, o fato de sair de casa “sem saber se voltaria”. E os jovens da época, cheios de idealismo, emoção, vontade de mudar uma realidade com o que estivesse à mão. Muito diferente da maioria dos estudantes de hoje, muito mais preocupados com as baladas e os feriados. Moro perto de uma universidade, e percebo que os estacionamentos ficam cheios às quartas e quintas, e bem vazios nos demais dias. Lembro-me do expediente no Congresso Nacional.
Chega de lamentar. Essa canção, uma das mais inspiradas de Vandré, é cheia de duplo sentido, fazendo uma comparação da vida do boiadeiro com a escalada de poder de um personagem, e sua relação com o povo, abaixo dele. Começa bem lenta, e ganha em emoção conforme vai se desenrolando, e, acompanhando pelo vídeo, é fácil perceber a empolgação do público e até de Chico Buarque, Nara Leão e Elis Regina, que estavam no palco. O contraponto era o posicionamento de vários guardas civis paulistas distribuídos entre o público, atentos a qualquer distúrbio ou palavra de ordem contra o regime. Ainda não se vivia o período negro do AI-5, mas já havia indícios de que aquela década não acabaria bem para o movimento estudantil. Chico, que comentei acima, apresentaria uma música concorrente “A Praça”, que disputaria os votos dos jurados palmo a palmo. Em todo o Brasil, pessoas apostavam que “Disparada” venceria o festival, outros, que “A Praça” sairia vencedora. No final, um empate entre as duas canções, e nada mais justo. Não faço idéia como as apostas se pagaram.
Surpreendo-me com os olhares, as expressões, quase se percebe a febre que tomava conta desses garotos e garotas, dispostos a mudar um estado de coisas que sabiam ser totalmente injusto. Observando os jovens de hoje, imagino que falta alguma coisa, que algo se perdeu. Parece que a vontade de lutar ficou em algum lugar do passado, anos-luz distante de mim.
Terminei de assistir com uma lágrima correndo, que disfarçadamente colhi com o lenço.
Lembro-me que uma professora me disse, anos atrás, que para o mundo ser um lugar melhor, antes terá que piorar muito.
Percebo que ela estava certa, e que o mundo mal começou a piorar...
Disparada
Letra de Geraldo Vandré
Música de Theo de Barros
Interpretação de Jair Rodrigues
Prepare o seu coração pras coisas que eu vou contar
Eu venho lá do sertão, eu venho lá do sertão
Eu venho lá do sertão e posso não lhe agradar
Aprendi a dizer não, ver a morte sem chorar
E a morte o destino tudo, a morte o destino tudo
Estava fora de lugar, eu vivo pra consertar
Na boiada já fui boi, mas um dia me montei
Não por um motivo meu ou de quem comigo houvesse
Que qualquer querer tivesse, porém por necessidade
Do dono de uma boiada cujo vaqueiro morreu
Boiadeiro muito tempo, laço firme, braço forte
Muito gado, muita gente pela vida segurei
Seguia como num sonho e boiadeiro era um rei
Mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo
E nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando
As visões se clareando, até que um dia acordei
Então não pude seguir, valente, lugar tenente
E o dono de gado e gente, porque gado a gente marca
Tange, ferra, engorda e mata
Mas com gente é diferente
Se você não concordar não posso me desculpar
Não canto pra enganar, vou pegar minha viola
Vou deixar você de lado, vou cantar noutro lugar
Na boiada já fui boi, boiadeiro já fui rei
Não por mim nem por ninguém
Que junto comigo houvesse
Que quisesse ou que pudesse, por qualquer coisa de seu
Por qualquer coisa de seu, querer mais longe que eu
Mas o mundo foi rodando, nas patas do meu cavalo
E já que um dia montei, agora sou cavaleiro
Laço firme, braço forte, de um reino que não tem rei
Na boiada já fui boi, boiadeiro já fui rei
Não por mim nem por ninguém
Que junto comigo houvesse
Que quisesse ou que pudesse, por qualquer coisa de seu
Por qualquer coisa de seu, querer mais longe que eu
Mas o mundo foi rodando, nas patas do meu cavalo
E já que um dia montei, agora sou cavaleiro
Laço firme, braço forte, de um reino que não tem rei !