terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

A carta


“DO AMOROSO ESQUECIMENTO
Eu, agora - que desfecho!
Já nem penso mais em ti...
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?”
                                           Mário Quintana



Quando estive pela última vez em Buenos Aires, aventurei-me por aquela parte do bairro de Boca, principalmente a parte que os turistas ainda não tomaram de assalto. Caminhei pelas coloridas ruas com casinhas de lata, cada uma mais colorida que a outra, o ar fresco do Prata a me refrescar, e nisso imaginei o mar, lá adiante, e a saga dos italianos que ali chegaram, apenas com a roupa no corpo, e por ali mesmo ficaram, aproveitando restos do porto para erguer seus barracos de lata. Eram cidadãos de segunda classe para a elite “criolla”, mas traziam seus sonhos, que acabaram eternizados nas ruas palpitantes de música e dança.
Me deixei levar até a Perez Galdós, esquina com Villafañe. Sabia que havia um sebo muito bom ali, e passei a procurar alguma coisa sobre a Guerra do Paraguai, que era mais um dos meus interesses naqueles dias. Meus olhos corriam as prateleiras carregadas, e, meio por distração, eles dançaram para cá e para lá. Achei um corredor dedicado à poesia, e me meti por ali como curioso que sou. Vi adiante uma primeira edição de “Fervor de Buenos Aires”, de Borges, apanhei-o, folheando as saborosas páginas do gigante literário, quando encontrei um papel, mais certo, um manuscrito, e abrindo, pareceu-me uma carta.
Ela estava escrita em italiano, e, como não conheço o idioma, lutei para decifrá-lo, com auxílio inestimável dos dicionários antigos que havia por ali perto. A idade tornara o papel frágil, e os cantos das dobras eram amarelos como conhaque, prontos a se rasgar. Consultei-o com cuidado, e o escrito, em italiano, era mais ou menos isso:

“B. Aires - 9 ottobre 42
Cara Manuela, Dio salvi i tuoi giorni,
così ho aspettato a scrivere di te,
che le mie lacrime si sono asciugate,
ma il ricordo di voi è ancora una fiamma.
Tu sai che non ho potuto dire addio,
E si sa che l'America non è diventato, se non morto,
ma ho promesso a me stesso che non avrei mai ti ricordi,
ma eccomi qui, senza sapere come non hai mai pensare.

Dopo tutto,
Amore,
Riccardo

A tradução pode ser algo assim :

“B. Aires - 9 outubro 42

Querida Manuela, Deus guarde teus dias,
tanto esperei para te escrever,
que minhas lágrimas secaram,
mas a lembrança de ti ainda é como chama.
Sabes bem que não pude me despedir,
E sabes que da América não tornarei, se não morto,
mas prometi a mim mesmo jamais lembrar de ti,
mas aqui estou, sem saber como nunca mais pensar em ti.

Apesar de tudo,
Amor,
Riccardo”

Comprei o livro, que já lera antes, a carta dentro, trouxe-a para o hotel, e no dia seguinte, à noite, tentei imaginar o que acontecera com Manuela e Riccardo, ainda na Itália, para que ele se fosse tão rápido embora. Teria ela engravidado dele ? Ou um parente melhor colocado financeiramente teria pago a passagem dele mas não a dela, por não serem casados, e o orgulho não permitiria que ele aceitasse que não podia trazê-la ? Seria um amor impossível ? Teria havido um crime ?
Tantas possibilidades, tão poucas pistas. No livro encontrei um nome a lápis, Emmanuele Cantino, uma data, dezembro de 1939. Algumas palavras estavam sublinhadas, também a lápis, mas nenhuma outra dica. Nada que os relacionasse.
No dia do meu retorno a São Paulo, passeei por Palermo, às margens do rio, e, enquanto o sol seguia seu curso, bem no final da manhã, imaginei que esses dois seres viveram um momento singular em suas vidas, intenso como o vinho que eu bebera na noite anterior. Cheio de uma amor impossível, logo, um amor daqueles que se recusa a morrer, apesar das impossibilidades. Recusei-me a usar a palavra impossível. Em honra aos dois, desejei que esse momento fosse deles, e que esse silêncio vivo fosse eterno, estivessem vivos ou não.
Atirei a carta, aberta, na corrente lenta e cheia de história do Prata. Desejando que essa carta se somasse a tantas e tantas aventuras que aquelas margens já viram.
Não sei se Manuela esqueceu Riccardo ou vice-versa. Eu nunca me esquecerei da carta deles, ainda que eu tenha esquecido o livro sobre a escrivaninha, no quarto do hotel...


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